Sobre o fato hospitalar azul-esverdeado veste sempre uma bata branca, de mangas compridas.

Mesmo no verão. Os doentes que Andreia Duarte examina na sala de radiologia nem com visão raio-X poderiam imaginar o que se esconde debaixo da farda, que passou a usar como uma segunda pele, protegendo-a dos olhares reprovadores.

Numa empresa, num banco ou num hospital, o dress code imposto ainda leva a que se ocultem como segredos os símbolos gravados na pele. Podem ser memórias, homenagens ou simples apontamentos decorativos.

Qualquer que seja o motivo, uma vez registado, jamais desaparecerá.

É assim desde tempos imemoriais já no período Neolítico e no Antigo Egito os corpos eram decorados. Hoje as tatuagens escolhidas pelos portugueses estarão até mais próximas dessas linhas primitivas do que das marcas desenhadas nos braços de soldados (relembrando o seu "Amor de Mãe"), ou nos peitos dos marinheiros (que usavam o corpo como diário de bordo, tatuando datas, sereias e mulheres). Ganharam o estatuto de obras de arte mas permanecem como projetos biográficos, pretendendo imortalizar "um momento marcante", como explica Vítor Ferreira, sociólogo e autor do livro Marcas que Demarcam: Tatuagem, body piercing e culturas juvenis (Ed. Imprensa de Ciências Sociais, 2009).

A radiologista na Urgência do Hospital de São José segue esse objetivo: imortalizar memórias. Fez a sua primeira tatuagem há 9 anos, quando tinha 25: um coração sagrado com uma coroa de Rei, em homenagem ao pai. "Naquela altura, foi como um desabafo.

Ele estava muito doente e acabou por falecer depois, mas quis registar aquilo que estava a sentir, no meu corpo, e homenageá-lo, de certa forma." Foi também no pé que nasceu a primeira tatuagem de Ricardo Pedro, 30 anos, administrativo numa empresa de construção Civil. Todas as suas tatuagens têm por base a mitologia japonesa: "Na perna, começa com uma máscara do teatro tradicional, a 'Hannya', ligada à paixão e ao ciúme, com uma cobra enrolada. Na coxa, tenho uma carpa e um dragão, que retrata a lenda da carpa que sobe o rio contra o sentido da corrente para chegar a terra e se transformar em dragão, e que simboliza o ultrapassar das dificuldades da vida para se atingir um objetivo. Nas costas, tenho uma estátua de um guerreiro samurai e um demónio em forma de javali, que combatem entre eles." Os desenhos (e os seus significados) pouco importam às famílias que, normalmente, são as que mais influência têm no processo de decisão. Ao início, as tatuagens aborreciam a mãe, confessa Andreia. Mas hoje, tal é o hábito, já estranharia se fosse de outra forma. "Sabe que as tatuagens não influenciam em nada o que sou ou o que faço. E às minhas tias mais velhas fazia-lhes mais confusão eu ser vegetariana do que ter o corpo cheio de tatuagens." Ricardo Pedro também não teve o apoio do pai. Aliás, ele ainda olha para as suas costas abanando a cabeça em sinal de reprovação... Mas, ao contrário do pai, a sua mãe ficou fascinada com as 'obras de arte' do filho e já vai na segunda tatuagem... a caminho da terceira.

Um novo estatuto social

Nos anos 1990, o universo das tatuagens em Portugal era ínfimo apenas três estúdios disputavam a pouca clientela, num país ainda receoso da arte associada a comportamentos desviantes.

Hoje, é cada vez mais procurada por jovens não oriundos desses mundos, integrados em círculos criativos, com formação superior e carreiras de sucesso e os ateliers transformaram-se em verdadeiras galerias de arte, multiplicando-se às centenas o seu número em todo o País.

O sociólogo Vítor Ferreira constatou que mudou não só o estatuto social de quem é tatuado mas também de quem tatua. O que ainda não mudou em definitivo foi o preconceito.

Uma tatuagem visível pode ser um fator de exclusão numa situação de entrevista de trabalho com códigos de conduta rígidos; mas também já é favorável quando os cargos estão associados a universos mais criativos.

Vítor Ferreira aponta para uma maior abertura às tatuagens: "O preconceito está relacionado com um imaginário de sujidade, de não manter um corpo 'puro'. Mas, comparativamente a anos passados, uma maior familiaridade veio desmontar a ideia de que quem faz tatuagens está no mundo da boémia ou da toxicodependência." Hoje, à radiologista e ao administrativo pouca pele resta para tatuar. Depois da primeira que fez no pé, Andreia Duarte continuou nas pernas. Na semana em que acabou o curso, quis registar com uma colega esse momento marcante: desenharam na pele uma flor com uma fechadura, um diploma, um livro e uma frase que simbolizava o futuro de ambas. Mais tarde, na outra perna, surgiu uma ampulheta com uma asa e uma vela, alusivo ao tempo que 'voa'. Nos braços, esvoaçam traças que, por se alimentarem de livros, representam o conhecimento e os ensinamentos da vida.

O sociólogo Vítor Ferreira explica que se torna difícil parar porque a dor pode ser viciante, bem como a provocação social que continua implícita no ato de tatuar: "Há um duplo desafio quando se fazem tatuagens.

Desafiar as famílias, os patrões, os colegas.

E suportar a dor para depois se obter um resultado esteticamente agradável aos nossos olhos, faz com que se queira repetir o processo." Além disso, colecionar tatuagens no corpo faz tanto sentido, para algumas pessoas, como colecionar selos. "Gosta-se do traço, da criatividade de um artista, e por isso 'compram-se' várias obras de arte", explica Andreia. "Esta semana vou de propósito ao Algarve para ser tatuada por um artista britânico. Quero ficar com uma tatuagem dele, porque admiro o seu trabalho."

Contra a norma

No Hospital de São José, em Lisboa, a radiologista é conhecida por todos. Pelas suas tatuagens? Não. Pela boa disposição. "Sabem aquilo que sou, que sempre fui competente.

Mas um dos meus colegas, que era chefe de equipa, quando soube que eu tinha tatuagens teve uma conversa séria comigo.

Era completamente contra! Mas agora, passados alguns anos de trabalho em conjunto, já mudou a sua perceção.

O filho pediu-lhe para fazer uma tatuagem e ele recomendou-lhe que falasse comigo, para ir ao estúdio onde faço as minhas." Porém, ainda há muito caminho a percorrer até à aceitação plena na sociedade. Principalmente nos dias de calor, quando exibem mais a pele, Andreia e Ricardo ouvem de tudo um pouco.

Não entendem o preconceito e fazem questão de o contrariar, mostrando-se sempre disponíveis para conversar e explicar a sua paixão.

Ricardo Pedro vai passar seguramente os próximos dias a fazê-lo a começar pelo seu local de trabalho, onde poucos sabem que tem o corpo tatuado. O administrativo fez já uma pequena sondagem no escritório, para saber quantos colegas seriam leitores habituais da VISÃO. E confirma-se: "Vão ficar a saber quando a revista sair... Não faço ideia que reações irão ter mas estou confiante de que nada mudará nas nossas relações." Chegados aqui, será tarde para dizer "surpresa"?